Vinte anos após o retorno das eleições diretas para presidente, o Brasil ainda permanece distante de se livrar do principal inimigo do fortalecimento da democracia: a corrupção. O tema rouba a cena política de 2009, das obscuras compras de castelos e mansões aos confrontos éticos do maior partido do país, o PMDB, passando pelo polêmico retorno do ex-presidente Fernando Collor de Mello (PTB-AL) ao círculo de poder de Brasília.
Para debater propostas sobre os principais motivos que levam à corrupção e como combatê-la, a Gazeta do Povo compilou pesquisas nacionais e internacionais e ouviu especialistas no assunto – entre advogados, historiadores, escritores, cientistas políticos e representantes de organizações não-governamentais (ONGs). Eles levantaram 10 pontos fundamentais para enfrentar o problema.
Na opinião da maioria, a corrupção é algo entranhado nas estruturas de poder desde o início da colonização portuguesa e que só vai acabar com o envolvimento generalizado da sociedade. “Estamos falando de uma cruzada cívica”, resume o presidente da Comissão Especial de Combate à Corrupção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Amauri Serralvo.
1. Mudar as leis, que são permissivas
A legislação brasileira dificulta o combate à corrupção e, em alguns casos, até a estimula. Os crimes praticados por corruptos e corruptores têm punições leves. Quem frauda uma concorrência pública, por exemplo, pode ser multado e permanecer preso, em regime aberto, por um período de dois a quatro anos. Já para um roubo comum, a punição varia de quatro a dez anos de detenção, em regime fechado. “Isso só aumenta a sensação de impunidade e diminui o receio de praticar atos ilícitos”, alerta Fernando Knoerr, professor da Escola da Magistratura do Paraná.
Além disso, a lei prevê inúmeras possibilidades de recursos judiciais, fazendo com que processos se arrastem ao longo dos anos. “O recurso é um mecanismo importante para se evitar possíveis injustiças. Mas, utilizado em excesso, coloca em xeque a eficácia do Judiciário”, afirma o promotor de Justiça Mateus Bertoncini, do Ministério Público Estadual. Por fim, a imunidade parlamentar e o foro privilegiado para parte dos administradores públicos ajudam a disseminar a ideia de impunidade.
2. Reduzir o número de cargos comissionados
O governo federal tem quase o dobro de funcionários comissionados (20.420) do que a soma de EUA (9.000), Alemanha (500), França (500) e Inglaterra (300). Só no governo do Paraná são outros 3,6 mil e na, prefeitura de Curitiba, 458. A quantidade exagerada de pessoas que estão no serviço público por indicação política, sem prestar concurso, estimula a troca de favores e a proliferação de funcionários fantasmas.
O cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília, diz que, quanto maior a quantidade de comissionados menos eficiente é o funcionalismo. Segundo ele, o Brasil peca por não criar instrumentos de controle nessa área. “O Lula pode nomear livremente um exército de funcionários, enquanto o Obama (presidente dos EUA) precisa da aprovação do Senado para, pelo menos, dois mil cargos.”
3. Melhorar o controle público
Exigidos por lei, os órgãos de controle da administração pública deveriam cobrar dos outros departamentos estatais a prestação permanente das contas e da aplicação de recursos. Mas esses órgãos, tanto do Executivo como do Legislativo, acabam sujeitos a todo tipo de pressão política. Os conselheiros dos Tribunais de Contas (TCs), por exemplo, são indicados pelos governadores e têm de passar pela aprovação dos deputados. “Os conselheiros estão ali para garantir boa vida a quem os nomeou. Se os TCs acabassem amanhã, não fariam falta alguma”, afirma Claudio Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil.
Segundo especialistas, falta ainda eficácia na atuação do Ministério Público e da Justiça.
4. Mudar o sistema de emendas individuais
As emendas individuais aos orçamentos públicos consolidaram-se como um dos principais instrumentos de barganha do Poder Executivo com o Legislativo, nas esferas municipal, estadual e federal. No Congresso, por exemplo, a cada sessão importante – como no caso da prorrogação da CPMF em 2007 –, a liberação de verba para as emendas é usada pelo governo federal como moeda de troca para ter apoio no Legislativo.
Por ano, cada um dos 594 congressistas tem direito a indicar R$ 10 milhões em obras para seu estado ou municípios de sua base em emendas – uma brecha para a utilização de dinheiro público para fins eleitoreiros. O governo, porém, não tem obrigação de pagar os pedidos. Isso dá margem a negociatas.
“Enquanto não for revista a maneira como ocorre a distribuição de recursos na relação entre municípios, estados e União, a corrupção não vai diminuir”, afirma o professor de Ética e Filosofia Política Roberto Romano, da Unicamp. Especialistas citam duas soluções para o problema: acabar com as emendas individuais, partindo do princípio de que os deputados não têm conhecimento técnico para definir qual a prioridade na aplicação dos recursos; ou implantar um sistema de orçamento impositivo, no qual o governo é obrigado a pagar os recursos estabelecidos na Lei Orçamentária.
5. Aumentar a transparência no poder público
Os brasileiros, em geral, têm dificuldade para obter informações no poder público. A maioria dos órgãos estatais, por exemplo, simplesmente ignora a internet como instrumento de divulgação de informações. É o caso, por exemplo, de 377 das 399 câmaras de vereadores do Paraná, além da Assembleia Legislativa do estado. “A transparência é indiscutivelmente o maior inimigo da corrupção. Muitos políticos sabem disso e, por isso, têm tanto medo de divulgá-las”, afirma o diretor da ONG Contas Abertas, Gil Castelo Branco. A entidade tem apenas três anos e, juntamente com a Transparência Brasil, é uma das poucas especializadas na divulgação dos gastos públicos.
6. Agilizar a Justiça
A estrutura da Justiça brasileira evoluiu pouco nos últimos anos – em virtude, principalmente, de déficits orçamentários – e não tem conseguido acompanhar o aumento no número de processos. “A carência de estrutura reflete na demora dos julgamentos, que acabam caindo na impunidade. Isso incentiva ainda mais a corrupção”, diz o advogado Fernando Gustavo Knoerr.
Segundo o promotor de Justiça Mateus Bertoncini, os tribunais não estão estruturados de maneira adequada para julgar casos de corrupção. Os 120 desembargadores paranaenses (responsáveis pelo julgamentos de segundo grau), além de atuarem na capital – muitas vezes, longe do local dos acontecimentos –, são insuficientes para fazer o mesmo trabalho dos 568 juízes de primeiro grau.
7. Dar mais transparência ao financiamento das campanhas eleitorais
Campanhas eleitorais costumam ser financiadas por empresários e pessoas que têm interesses na administração pública. E, por vezes, a doação de recursos é uma forma de exigir uma contrapartida quando o candidato for eleito. Para alguns especialistas, o financiamento público de campanhas evitaria a ingerência privada no setor público. Mas nem todos concordam, pois a prática de caixa 2 nas eleições não seria eliminada. “Ninguém é capaz de acabar com a doação de recursos de onde sequer se sabe a procedência”, afirma o advogado Fernando Gustavo Knoerr. “O dinheiro privado – hoje no caixa 1 – vai acabar migrando para o caixa 2”, diz Claudio Abramo, da ONG Transparência Brasil. Alguns especialistas sugerem que os financiadores tenham de ser conhecidos durante as campanhas e não após ela, como estabelece a atual lei. Assim, o eleitor saberia quais são os interesses por trás de cada candidato.
8. Simplificar o sistema tributário
O Brasil tem hoje 61 tributos, entre impostos, taxas e contribuições. O sistema é considerado um dos mais complexos do mundo, o que estimula a corrupção. “Quem apresenta dificuldade quer vender facilidade”, diz o presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, Gilberto Amaral. Além da grande quantidade de tributos, o modelo brasileiro sofre também com o excesso de leis. “Posso assegurar que não existe hoje nenhuma pessoa no Brasil, por mais qualificada que seja, que conheça toda a nossa legislação tributária”, diz Amaral. E os erros de declaração costumam ter multas elevadas, o que estimula a corrupção. A solução seria uma profunda reforma tributária que simplificasse as regras.
9. Deixar o “jeitinho brasileiro” de lado
O famoso “jeitinho brasileiro” surgiu de maneira positiva, como uma forma de o povo se adaptar às dezenas de situações adversas do país. Porém, ele passou a ser usado com outros fins, para se conseguir vantagens pessoais, passando por cima das leis. Para o promotor de Justiça Mateus Bertoncini, o “jeitinho” carrega forte individualismo e ausência de consciência coletiva, que podem derivar para atos ilícitos e corrupção. O cientista político Carlos Luiz Strapazzon, do Unicuritiba, destaca ainda que não existem corruptos sem corruptores e, portanto, parte da sociedade também está envolvida em atos ilícitos ligados ao poder público. Portanto, investir na educação – sobretudo das crianças – é o caminho para mudar essa mentalidade.
10. Estimular a participação do brasileiro na política
O brasileiro tem uma tendência a não se envolver nos assuntos públicos, fruto do paternalismo herdado das origens ibéricas do país. “O Estado sempre foi visto como o provedor da população, como um organismo dissociado do cidadão comum”, diz o escritor Laurentino Gomes, autor do livro 1808, que narra a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Duzentos anos depois, a falta de envolvimento da sociedade ainda é um dos principais problemas do combate à corrupção. “Estamos falando de uma cruzada cívica. Se o povo não denunciar, se não deixar de lado atitudes consideradas banais como comprar produtos piratas, a corrupção vai vencer”, avalia o presidente da Comissão Especial de Combate à Corrupção da Ordem dos Advogados do Brasil, Amauri Serralvo.
da Gazeta do Povo
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