- Legalmente concedido a um estrangeiro que se encontre em território brasileiro o estatuto de refugiado, fica excluída, como é lógico e legal, a possibilidade de que depois disso, e sem que ocorra qualquer fato novo, seja atendido o pedido de um governo estrangeiro para que ele seja extraditado. Ficaria ridículo e exporia o Brasil e suas instituições jurídicas a dúvidas nada dignificantes conceder, por via regular, o estatuto legal de refugiado e depois efetuar a extradição daquele mesmo a quem concedeu o refúgio legal.
Tudo isso tem aplicação a processo pendente no Supremo Tribunal Federal envolvendo o refugiado de origem italiana Cesare Battisti. Condenado em seu país à pena de prisão perpétua há cerca de 30 anos, num processo que correu à sua revelia e no qual foram feitas as acusações de homicídio e de subversão - crime político, obviamente -, Battisti, que sempre negou a autoria dos homicídios, buscou refúgio fora da Itália e veio para o Brasil em 2004. Aqui vivia pacífica e honestamente quando o governo italiano o descobriu e pediu sua extradição. Iniciado o processo no STF para decidir sobre esse pedido, o presidente do tribunal determinou sua prisão, a fim de que aguardasse preso o desfecho do processo.
Entretanto, enquanto tramitava no STF o pedido de extradição ocorreu um fato novo, de relevância fundamental, que foi a concessão do estatuto de refugiado a Battisti. É oportuno ressaltar aqui alguns aspectos jurídicos da concessão do refúgio legal. Em 1951, visando a dar abrigo e proteção às pessoas compelidas a refugiar-se, a ONU aprovou uma Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, seguida, em 1966, de um Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, documentos internacionais que tiveram a adesão do Brasil. Para dar efetividade aos compromissos assumidos foi aprovada a lei número 9.474, de 1997, que definiu mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados. Por meio dessa lei foi criado o Comitê Nacional para os Refugiados - Conare, órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da Justiça, ao qual compete decidir em primeira instância sobre pedido de refúgio. Por disposição clara e expressa do artigo 29 da lei, no caso de decisão negativa cabe o direito de recurso ao ministro da Justiça, que, obviamente, poderá modificar a decisão. E, pelo artigo 31, "a decisão do ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso", sendo, portanto, definitiva.
Indeferido pelo Conare o pedido de Battisti, este recorreu ao ministro da Justiça, que, no desempenho de suas atribuições legais, proferiu uma decisão formalmente perfeita e bem fundamentada. Assim, foi acolhido o recurso do interessado, sendo-lhe concedido o estatuto de refugiado em janeiro de 2009. Pelo artigo 33 da lei, "o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do refúgio". É essa, precisamente, a situação legal de Battisti. Tendo em conta os fatos e a legislação vigente, a única decisão legalmente correta do STF será a determinação do arquivamento do pedido de extradição, pela superveniência de uma situação jurídica nova, legalmente impeditiva de atendimento do pedido.
Jurista e professor emérito da USP
Do Jornal O Estado de S.Paulo
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